Ou a imaginamos bucolicamente é o que mostra o excelente artigo visionário do sociólogo Zander Navarro que o Diário Verde republica com importantes e sérias reflexões sobre a drástica e ágil mudança que a tecnologia provoca no modelo tradicional da produção de alimentos.
O cenário atual é de galopante velocidade estrutural desta transformação do que o articulista chama de velha agricultura, ou seja, das decisões intuitivas do passado para um sistema econômico de exigências analíticas imensas e desafiadoras, sempre conduzida pela ciência de vários campos disciplinares.
Evidentemente, vai gerar consequências sociais como a eliminação dos produtores tradicionais e a entrada dos agro-administratadores que possam decifrar a complexa nova estrutura com o nascimento da “agricultura digital”
Agora reconfigurada a partir de bases de dados e alta conectividade cuja revolução mobiliza a biociência agrícola, nos seus avanços na genética molecular, robótica etc.
Resumindo: a velha agricultura como a conhecemos vai sendo convertida em mais um mero “serviço” integrante do sistema agroalimentar para oferecer a mercadoria “alimento”…Confira.
A velha agricultura começa a fazer parte das memórias passadas
O título não é sensacionalista e nem propõe um exercício especulativo em futurologia. De fato, são dois os principais desenvolvimentos, concretos e de grande envergadura, que apontam o desenlace indicado – uma inédita transformação da agricultura.
Um deles é mais geral e o outro diz respeito, especificamente, ao caso brasileiro. Não ocorrem apenas na esfera econômica e financeira, pois também se modifica a estrutura produtiva e tecnológica, gerando consequências sociais, às vezes, problemáticas.
Uma vez aprofundados e irreversíveis nas duas décadas adiante, sem nenhuma dúvida, são desenvolvimentos que mudarão abissalmente a atividade humana que conhecemos como “agricultura” há pelo menos dez mil anos.
E o Brasil, posicionado na iminência de se alçar à maior potência mundial ofertante de alimentos, igualmente observará inevitáveis e sísmicas mudanças em seu mundo rural.
Mercadoria “alimento”
Ainda mais decisivo, se examinada por uma lente cultural, será atividade operada com escassa presença de pessoas, gradualmente diluindo a imaginação da sociedade sobre a vida rural e até mesmo esmaecendo o papel da natureza na produção dos alimentos.
Ao contrário de algumas sonhadoras previsões, a distância que vincula a origem rural à mercadoria “alimento” deverá se ampliar notavelmente nas percepções dos indivíduos, também em virtude das impressionantes inovações no processamento agroindustrial, capaz de ofertar novos produtos em velocidade crescente.
Há uma silenciosa, mas espetacular revolução em andamento combinando a transformação organizacional e a intensificação tecnológica no que chamamos de ‘agropecuária’
No lastro cultural mais entranhado da sociedade, entre os grandes temas de discussão, esse fato gradualmente fará desaparecer a concretude das regiões rurais, a vida social no campo e até o papel da natureza.
Na visão dos cidadãos, o bucolismo dos ambientes “naturais” e suas supostas virtudes serão assim separados dos espaços da produção.
O primeiro desses “grandes eventos” já está em curso nos sistemas agroalimentares dos países de capitalismo avançado onde o setor ostenta significativo peso econômico, particularmente nos Estados Unidos.
Há uma silenciosa, mas espetacular combinação entre a transformação organizacional e a intensificação tecnológica em andamento na operação econômica que intitulamos de “agropecuária”.
São inúmeros os vetores que conduzem à mudança, dispensando os agricultores, mas exigindo agora agro-administradores que possam decifrar e coordenar a complexidade que vai se estruturando.
Na história do capitalismo, como em outros momentos que condensaram múltiplas inovações, são processos que elevam a produtividade geral, ampliam fortemente a produção e eliminam muitas incertezas (enquanto introduzem novos riscos).
Como resultado geral, vem se alterando a própria essência da atividade, fazendo-a totalmente distinta de sua imagem milenar.
Muitos são os campos de inovação que promovem esta revolução. São ações que mobilizam a biociência agrícola, especialmente os avanços na genética molecular, os novos produtos em automação e robótica e, sobretudo, o nascimento de uma “agricultura digital”, reconfigurada a partir de bases de dados e altíssima conectividade.
São novas técnicas que tornam exponencial a capacidade dos administradores de otimizar os resultados, maximizando o uso dos recursos disponíveis.
Se as manchas dos solos diferem entre si, por exemplo, multiplicando o uso de sensores, qual a combinação de água, fertilizantes e controle de pragas e doenças, além de plantas reconfiguradas por edição genômica, que permitirá obter a máxima produção com a mais alta produtividade final – e, portanto, a melhor rentabilidade possível?
As respostas concretas já existem, na produção de alguns países.
A graciosa imagem dos animais comendo preguiçocamente em verdes pastos logo se tornará uma fotografia nostálgica
Sem detalhes adicionais, inclusive sobre as inovações existentes nas demais partes do sistema agroalimentar, mudam assim a estrutura decisória e o “modelo de negócio” da agropecuária.
Imagine-se, como curta ilustração, a pecuária de leite, que caminha para o confinamento de alta intensidade, com um único objetivo: obter a máxima lactação diária, descolando-a totalmente da alimentação obtida no campo.
Enfim, afirmado cruamente, trata-se de substituir a velha agricultura das decisões intuitivas do passado para um empreendimento econômico de exigências analíticas imensas e desafiadoras, conduzida obrigatoriamente pela ciência de vários campos disciplinares.
O mundo rural do Brasil também vai sendo radicalmente transformado
São dois mundos opostos, e a velha agricultura começa a fazer parte das memórias passadas.
Inclusive, é uma parte da economia que vai sendo convertida em um mero “serviço” componente do sistema agroalimentar, como todos os demais que constituem as cadeias produtivas.
São quase cataclísmicas as projeções antevistas, pois um terço de nossos agricultores sequer sabe ler e em todas as regiões a maioria dos jovens está preferindo deixar o campo.
O próximo Censo, adicionalmente, mostrará uma concentração ainda maior da riqueza rural, apontando os vencedores das mudanças. Por essas e outras razões, inclusive a inoperância da ação governamental ante essas gigantescas transformações, o mundo rural do Brasil também vai sendo radicalmente transformado.
Em 2040, quem compará-lo com os dias de hoje, não acreditará que estivemos vivendo no mesmo país.
Zander Navarro é engenheiro agrônomo, doutor em Sociologia (Sussex University, Inglaterra), pesquisador da Embrapa (Brasília). Foi professor e pesquisador no “Institute of Development Studies” (IDS, Brighton, Inglaterra), pesquisador visitante nas universidades de Amsterdam, Toronto e no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts, Cambridge, EUA), e assessor do Ministério da Agricultura, dentre outras atividades.
Autor e/ou organizador de livros focando a área rural: Agricultura brasileira – Desempenho, desafios e perspectivas (IPEA, 2010); Agricultura familiar: é preciso mudar para avançar (Embrapa, 2011); A pequena produção rural e as tendências do desenvolvimento agrário brasileiro: ganhar tempo é possível? (CGEE, 2013); O mundo rural no Brasil do século 21 (Embrapa e Unicamp, 2014), dentre outras obras.
Email: z.navarro@uol.com.br.
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